domingo, março 12, 2006

"O mundo começou a ser feito por trás"

Na passada sexta-feira, fui assistir à apresentação do Terceiro Livro de Crónicas de Lobo Antunes que contou com a marcante presença do escritor. No início da sessão, uma leitora empenhada de voz pujante leu uma carta de amor do livro D'este viver aqui neste papel descripto - Cartas de Guerra, publicado pelas filhas do autor, e uma crónica retirada do livro apresentado. O tom era demasiado esfusiante, de júbilo quase, o que contrastava abruptamente com as realidades veiculadas nos textos lidos. A guerra é um lugar impossível, distante, envolto em revoltante estranheza em que a única redenção advém do poder do Amor, o derradeiro sinal de esperança nesse mundo feito de morte e tingido de sangue.
Após esta breve introdução, foi a vez do autor, que desde logo reiterou a ligação de afecto que o une à Beira Alta, mais propriamente a Nelas, onde os avós tinham uma quinta. A magia das palavras soltou-se quando Lobo Antunes leu a crónica que aborda a morte do pai e que, segundo o autor, era "uma homenagem à Beira Alta." Agora sim, o tom era apropriado, porque pesado, duro, circunspecto. Porque a morte não se compadece com outra leitura, com outro tom senão esse. Foi uma leitura muito comovente com uma força colossal que advinha das profundezas das memórias. As intervenções do público foram escassas. A primeira pergunta recaiu, como não podia deixar de ser, no porquê de escrever, ao que LA respondeu com humor: "Porque não sei fazer outra coisa. Se fosse o Fred Astaire dançava, mas não sei."O seu tom pesado acaba por ludibriar pois, ao longo de todo o seu discurso, há uma fina ironia (desencanto também) e um sentido de humor muito peculiar, quase britânico.
O autor manifestou uma clara aversão aos intelectuais, chegando mesmo a afirmar que para ser intelectual, lhe faltava a barba, os óculos e o mau hálito.
Um dos membros da plateia fez uma intervenção inflamada, recheada das provincianas "Vossas Excelências", etc. e tal, sem colocar qualquer questão, apenas aproveitando a oportunidade para dizer palavras como "súmula" ou "indizível" e gozar de algum "estrelato" no microcosmos beirão! A interioridade de Portugal no seu melhor! Adiante.
Uma vez que este interveniente tinha mencionado a experiência do autor enquanto psiquiatra, este último falou longamente acerca das noites infindáveis no Hospital Miguel Bombarda e dos curiosos (ainda que irremediavelmente solitários) pacientes - especial destaque para os psicóticos, que segundo LA são "os mais criativos" - com que se cruzou. Um deles era um campino do Ribatejo que afirmava ser D. João I e exigia honras de tratamento régio. Outro afirmou um dia "o mundo começou a ser feito por trás". Exemplos como estes atestam a riqueza de experiências que o autor vivenciou e que, inevitavelmente, desaguaram na sua produção literária.
Foi uma conversa que, por mim, poderia estar ainda a decorrer agora, tal a força das palavras, a poesia constante que delas ecoava, e sobretudo a universalidade do discurso de Lobo Antunes. Uma pessoa fascinante, avessa às "Vossas Excelências" vazias e puritanas deste mundo, que não precisa de sorrisinhos de circunstância, nem de desfilar em palcos mundanos. Uma pessoa como todos nós, feita de luz e de sombra, de lua e de sol, dotada, porém, de um poder que poucos detêm: transpor para as palavras o âmago das emoções mais profundas e impronunciáveis. À custa de um trabalho muito intenso, minucioso, sem romantismos. Não há inspiração, apenas trabalho árduo. (Aconselha-se a leitura da crónica "O mecânico" em que somos convidados a entrar no universo da criação literária, na sua oficina.)
"Toda a vida ansiamos por ser compreendidos sem termos de falar". Está tudo dito.

2 Comments:

Blogger Ana M Abrantes said...

Obrigada, Ana, tinha acabado de enviar um post à sua outra mensagem, para saber como tinha sido o encontro com o escritor.
Déjà-vu foi a sensação que tive ao ler a sua crónica. No mesmo sítio, há ano e tal, ouvi Lobo Antunes falar do mesmo apego a Nelas (ou a um tempo que lá ficou), da mesma inevitabilidade da escrita, doença de que padece há anos e que não lhe dá tréguas, da decadência sedutora do nosso país, que lhe prende o olhar aos naperons e flores de plástico, à jactância bem penteada dos políticos, às jóias penduradas nos bustos flácidos das elites.
Também então baixei o olhar, incomodada com a eloquência desapropriada da apresentação do escritor, com a verborreia inquisidora de quem compra Lobo Antunes como um vinho de que todos falam mas ninguém bebeu. Mais il faut, quand même...
Estou deserta para ler as crónicas!

7:18 da tarde  
Blogger ANA COTA said...

Adorei o seu comentário!
Traduz eloquentemente a essência não só da escrita de Lobo Antunes, mas do personagem em si e do olhar a um tempo desencantado e a outro tempo comovente que ele lança sobre este Portugal ainda tão primitivo.
Como dizia José Cardoso Pires, o seu melhor amigo: "Portugal não é um país, é um sítio mal frequentado." É preciso ser-se muito português para ter esta triste clarividência.
Contudo, toda esta pluralidade de traços "tipicamente portugueses" revela-se esssencial para a escrita de LA, filtrada através do seu olhar de psiquiatra e de implacável observador.
Como traduzir Lobo Antunes? Lembro-me de uma vez ter visto um documentário sobre o escritor e de a tradutora sueca ter afirmado que vinha com frequência a Lisboa para respirar a cidade, Alfama, as pessoas, o caos urbano, com vista a melhor traduzir.
Serão, porém, traduzíveis os naperons, os bibelôs, as nossas senhoras de Fátima que anunciam o tempo?...

7:37 da tarde  

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